Ser já é suficiente
A gente é que complica
Agora, aqui na minha cozinha, algo gostoso acaba de sair do forno. São quase quatro da tarde, a hora que o corpo amolece, as pálpebras pesam, os pés pedem descanso e a boca água por um pedacinho de deleite. Não demora a pequena acorda da sua segunda soneca, tudo o que tenho são dez minutos, quiçá, quinze. Corto uma fatia generosa e sinto o cheiro denso do chocolate se entranhar em cada molécula do ar. Lembro de onde surgiu o desejo de procurar aquele meu caderno de receitas antigo e reviver a primeira iguaria que aprendi a fazer bem. Foi ao ouvir a comadre Dani falar de um lugar que ela visitou lá em São Paulo, no bairro do Campo Belo. Foi ali que a vontade brotou em mim.
Coloco os pés para cima, ajeito as almofadas atrás das costas, enfio a primeira garfada generosa na boca e fecho os olhos para sentir. Como é bom se deixar inspirar pelas andanças de outras mulheres — penso.
Te convido a preparar algo gostoso para beber, sentar aí na sua varanda e abrir seu portão, dando passagem para a história de hoje (a segunda de uma série de oito) que tem gosto de chocolate e fala sobre encontrarmos o nosso jeito de ser mãe.
Desfrute desse passeio com a querida Dani.
Com um afeto radical,
Verbena Cartaxo
Ser já é suficiente
por
São Paulo, 9 de maio de 2025.
Leio tudo que escrevi até então para a série de lançamento da Comadreria. Não gosto de nada. Não sinto minhas palavras.
Cheguei ontem na minha cidade natal. É a primeira vez que venho ao Brasil acompanhada dos meus dois filhos. Meu menino e minha menina. Meu marido nos acompanha. Ele, em sua terceira vez no Brasil, ainda não conhece muito daqui, mas está bem assim. Vida de pai e mãe não é nada monótona, ele está feliz em saber onde fica a padaria do bairro ou o café mais gostosinho e isso lhe basta.
É a primeira vez que meu pequeno entende o que estamos fazendo aqui. E que parceiro de viagem que ele é. Apesar das 24 horas em trânsito, não fez uma birra. Pelo contrário, se deixou animar com qualquer coisa nova, foi carinhoso. Quando choramingava, logo enxugava suas lágrimas. Era um cansaço extremamente compreensível. Já a pequena, com seus oito meses, ainda não entende lá muito do que lhe acontece, mas colabora e muito. Está com mais um dentinho nascendo — o número quatro — chora e gruda em mim, mas até que também vai com vovó e vovô, se deixando animar com cada objeto novo que lhe chega aos olhos.
Uma sinusite me enche a cabeça, quase me impedindo de pensar. Será que vou conseguir entregar alguma coisa ainda hoje e cumprir o prazo sugerido pela querida V.? Mas o que é que eu quero transmitir? Independente do que for, tem que ser bom.
Essa última frase me traz de volta para o agora. E o que é bom?! Por que é tão difícil apenas ser?
Não há texto que encante sem emoção. Pensar demais estraga.
Primeiro vem a emoção, depois a edição.
Preciso vivenciar para escrever. A sinusite me entope a cuca. As crianças me roubam o tempo, interrompem meus pensamentos. Preciso de espaço. Me lembro das experiências antes de ser mãe. Falo num tom de brincadeira que era feliz e não sabia. Pode até ser verdade, mas completa eu não era.
Um texto tecnicamente bem escrito e, no entanto, com um tom inseguro pode até envolver e a gente se identificar, mas não prende. Ao tentar escrever o melhor texto, falho. Falho categoricamente ao buscar fazer algo que seja conceitualmente visto como o melhor. Falho ao tentar ser a melhor: a melhor amante, a melhor esposa, a melhor amiga, a melhor filha, a melhor mãe. É só sendo quem sou que sou o meu melhor e isso encanta, envolve, prende.
— Você vem de novo?, o mais velho me pergunta ao abrir o portão de casa.
— Mas é claro que eu volto, meu filho. Eu sou sua mãe, você acha que vou te deixar? Vou só escrever e já volto.
Assim saio com minha mochila nas costas, incrivelmente leve se comparada à sua irmã, determinada a voltar com palavras que exprimam as minhas emoções.
/
Dobro a esquina da rua, passo pela costureira, depois pelo sebo, atravesso a rua, mais uma, encontro o portão laranja aberto. Há meses que venho sonhando com um instante neste café. É uma browneria acolhedora no Campo Belo. Gosto dos detalhes carinhosos do ambiente. O clima aqui é inigualável.
Entro.
— Tem wifi?
— Hm-hm.
— Ah, ótimo. E o menu degustação, ainda tem?
— Temos.
— Ótimo também. Peço aqui mesmo?
— Não, eu vou até a mesa, fica à vontade.
À vontade. Ah, sim. Serão momentos sem aqueles mãe, olha, olha, sem dadadada, gugugugu, sem mãe, quero fazer cocô, vem comigo?, sem um mãe, vem, vem, vem brincaaaaar.
Me distraio com o ambiente e com a receptividade dos atendentes. Os brasileiros são felizes e é uma felicidade que contagia. Há frases encorajadoras, arranjos de palha e macramê nas paredes. Não que não haja brownies ou decorações aconchegantes na Europa, mas há algo aqui que é difícil de recriar. Isso sem falar na trilha sonora bem brasileira.
— Eu quero um menu degustação de brownies e…hm, tá quente, né…então, uma água com gás!
— Gelo e limão?
— Não, só gelada mesmo.
Não é um brownie comum. São quatro mini brownies. Escolho os sabores puro chocolate, castanhas, doce de leite e paçoca. É um chocolate que desmancha na boca de tão bom. Os quatro quadradinhos vem servidos em cima de um azulejo — simples assim. É isso, as melhores coisas da vida são simples. A gente é que complica.
Pensar demais estraga. Buscar ser a melhor em tudo, cansa, estressa, complica.
“Andar com fé eu vou que a fé não costuma faiá.”, me relembra Gil pelo alto-falante. Volto ao texto com fé. Confio no que sinto.
/
Quando segurei meu filho no colo pela primeira vez, apenas acompanhada pelo meu marido e duas parteiras, me senti predestinada àquele papel. O mundo parou e eu sabia que estava onde queria estar, sendo quem vim ser nessa vida, tendo fé diante do meu destino. Não estava buscando ser a melhor, estava sendo. Mas foi só sair de lá que fui confrontada com o mundo real. Informações mil, dicas impostas, jeitos certos de se fazer as coisas. Quanto mais eu lia e ouvia, mais se esvaía aquela sensação do primeiro colo. Meses depois, eu mesma contava outra narrativa: “só me senti mãe depois dos três meses de vida dele”. Apaguei aquela primeira sensação. Me deixei levar pelas inseguranças, pelo certo ou errado, por aquilo que ouvia dizer ou que lia em manuais para pais. Nem sei dizer quando a sensação de ser predestinada para essa função voltou. Mas ela voltou, ainda bem. Talvez tenha voltado durante a nossa viagem de motorhome. Aqueles foram meses bem longe de tudo que é usual. Me sentia diferente e por isso, permitia fazer o que me cabia ali. A vida era sem parâmetros e distante da minha realidade anterior, as referências também mudaram. Talvez tenha sido ali que encontrei o meu jeito de ser mãe.
— Você vem de novo, mamãe?
Mal sabe ele que é o combustível da minha criatividade. Foi no momento em que me tornei mãe que descobri que quem eu sou hoje já é suficiente. Para os meus dois filhos. Para ele e para ela. Só falta que eu aprenda a acolher a mãe suficientemente boa que sou.
A comadre que te escreve hoje
Prazer, Daniela.
Sou mãe de dois há quase um ano, mas já faz quase quatro anos que assumi esse papel. A maternidade toma conta da minha vida inteira, mesmo não sendo a minha vida inteira ;) Ainda assim, me pego sempre escrevendo sobre ela e você pode encontrar um pouco disso na minha newsletter
.Moro na Alemanha desde 2011 e apesar de sentir falta da leveza do povo brasileiro, não sinto saudades alguma do caos e da insegurança da capital paulista. Tanto no meu trabalho remunerado – uma ONG especializada em projetos de consumo e produção sustentáveis – quanto através de uma escrita autobiográfica, busco transformar o mundo num lugar mais humano. Como boa pisciana com ascendente em Capricórnio, me formei em Engenharia, e compreendi que sou, na verdade, obcecada por pessoas e suas relações, afinal são elas que fazem os processos. Atualmente, você me encontra muito na cozinha, me aventurando em pães de fermentação natural, ou dedicando momentos na produção do meu primeiro romance, sempre com alguma criança correndo ou engatinhando em volta.
Acontecendo na Comadreria
A sala do Zoom já está reservada para a primeira roda de conversa entre comadres que acontecerá no dia 31 de agosto às 10h, horário de Brasília. Nos encontraremos do jeito que for, com caos e cria(s) na barra da saia, cabelos escovados ou amarrados naquele coque alto velho de guerra. O que importa é estarmos juntas! O link para esse primeiro encontro (que é gratuito) será compartilhado na véspera, por e-mail.
Sabia que toda sexta-feira nós estendemos o Varal da Comadreria lá no nosso chat? O varal é um espaço para pendurar e divulgar sua escrita, encontrar outras comadres que escrevem e tecer belas conexões. Para acessá-lo basta instalar o aplicativo do Substack e procurar por nós.
E por falar em tecer conexões, o Atlas das Mães que Escrevem no Substack será atualizado em meados de Agosto. Se você ainda não faz parte dessa cartografia viva da escrita materna, te convido a preencher esse formulário e colocar seu nome e sua escrita no mapa.






Essa série está um absurdo!
Me sinto claramente na varanda de minha casinha na vila, ouvindo outras mulheres. Que incrível!
Dani… sem palavras. Te abraço muito forte nesse processo. Simplesmente sejamos. <3
Que honra fazer parte dessa série de lançamento! Não precisei pensar duas vezes para dizer que sim quando recebi teu convite, querida V. <3
Obrigada pela linda introdução à leitura da minha contribuição!
Faz tempo que essas palavras transbordaram meu coração e é impressionante como elas seguem atuais e me trazem um lembrete essencial: "simplesmente ser".